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19/09/2019 às 20h08min - Atualizada em 19/09/2019 às 20h08min

Bacurau: Crítica

Observatório do Cinema
Foto: Reprodução

Laureado recentemente com o Prêmio do Júri em Cannes e selecionado em sequência para uma sorte de festivais de cinema, o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, parece em parte feito por sua trilha de honrarias. Feito, no caso, porque tamanho hype criado é capaz de instigar o espectador a criar uma experiência imaginada antes mesmo de adentrar as salas lotadas de cinema, e portanto o risco de não-correspondência às expectativas do público é enorme. De fato, o longa desafia constantemente essas noções pré-concebidas de “maior longa de gênero brasileiro” e mesmo a de candidato certo ao Oscar 2020, mas faz isso por uma convicção que o torna ainda mais especial

Esta desacomodação faz parte da experiência de qualquer cinema que se permita desenvolver e arriscar novos rumos, e depende por consequência de um público aberto às possibilidades. A julgar pela maneira como Bacurau tem ressoado com os espectadores, ainda que em sua fase de pré-estreias, essa abertura felizmente é real. Resumido lá fora como uma espécie de híbrido entre western, ficção científica e distopia, o longa de Mendonça Filho e Dornelles recusa, por sua vez, em se especificar dentro de quaisquer gêneros cinematográficos, e sim reforça acima de tudo sua origem brasileira, como se Brasil fosse uma ampla categoria cinematográfica em si, criando assim sua própria intertextualidade.

Se as produções recentes da mineira Filmes de Plástico, como Temporada e No Coração do Mundo, tem como marca principal a sua identidade local, seja para imergir no naturalismo de Contagem ou quebrá-lo com elementos estranhos, Bacurau, da pernambucana CinemaScópio – em co-produção com a Símio Filmes -, impõe desde o início uma visão forasteira – mas nunca alienada – ao público sobre nosso país, principalmente sobre a região Nordeste. Forasteira pois, através de um salto temporal para anos no futuro, reapresenta o sertão com leves toques de surrealismo, mergulhando em uma cultura e rituais locais sem explicá-los com diálogos expositivos ao público desfamiliarizado.

Em paralelo à chegada da personagem Teresa (Bárbara Colen) à cidade de Bacurau, a tempo do funeral de uma matriarca local, é sugerida ainda uma grande transformação externa no restante das regiões brasileiras. Embora essa situação macroscópica do país seja explicitada pontualmente no decorrer da obra, especulando sobre uma onda de horror e violência que corre por todo seu território e explicando muito de seus aspectos mais remotos, Bacurau enfoca o Nordeste futurista para explorar as relações desiguais de poder entre metrópole e colônia, através da introdução de um grupo de estrangeiros que passam a caçar os habitantes locais de forma basicamente arbitrária.

No entanto, se o longa reconhece essa desigualdade, aparentemente desnivelando o jogo ao salientar as avançadas tecnologias utilizadas pelos invasores de Bacurau, Mendonça Filho e Dornelles compensam o lado dos desfavorecidos com momentos elevados de catarse e escolhas bastante conscientes quanto à representação da violência em tela, alternando os registros de acordo com quem sofre a violência e quem a inflige. Apesar de trágicas, as mortes dos nativos, por exemplo, nunca são tão gráficas quanto as dos cruéis invasores, o que é uma decisão eticamente louvável dos cineastas já que se trata, afinal, de uma ode à resiliência do povo de Bacurau.

O desbalanço entre a natureza das mortes em cada lado ainda é usado como um eficiente escape para o humor, quase que tornando os antagonistas em piada assim que o terceiro ato do longa chega. O estrangeiro de Udo Kier ao sniper, em sua posição de invulnerabilidade distante da ação, logo sangra por causa de um pequeno espinho em sua mão, enquanto o restante da trupe gringa mal sabe o que os aguarda nas casas, escola, igreja e museu de Bacurau. Uma cena específica envolve uma possível vítima Bacurense – ou, apenas, gente – na mais vulnerável das situações, drogado e nu, porém se encerra da forma mais inesperada. Por conta dela, um jornalista europeu perguntou aos diretores, na coletiva de Cannes, o que é um bacamarte.

Não por acaso, este bacamarte significa muita coisa. Além de uma arma tipicamente colonial, ela pode muito bem sintetizar a população de Bacurau. Vista de fora como ultrapassada, por vezes até estranha, vide a pergunta do jornalista na realidade ou a visita de uma dupla de turistas do Sudeste à cidade, ela é capaz de devolver o estrago em dobro. E de acordo com a resposta dos nativos de Bacurau, essa capacidade de violência é esbanjada, exposta em paredes àqueles que lá visitam, não como forma de coerção, mas como uma prova de equivalência. Assim como o feitio técnico do longa, em efeitos visuais, desenho sonoro e sofisticação narrativa, faz bonito diante de filmes estrangeiros.

“Você não acha que ele exagerou?”, diz uma das personagens sobre a reação violenta de outra aos invasores. Bacurau, o filme, será inevitavelmente acusado de exageros, caricaturas estrangeiras e falta de sutileza, mas a obra escolhe seu caminho com um propósito. Ao invés de abraçar o pessimismo e trazer este retrato de um Brasil – ou seria Brazil? – distópico para chover no molhado, Mendonça Filho e Dornelles parecem propor, através de uma obra de ficção grotesca, uma bifurcação entre realidade e cinema. Será que queremos seguir pelo caminho violento exibido em Bacurau? Ou tomaremos as rédeas e direcionaremos o país a um destino menos desfavorável?


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