Turbante, Corona, Hércules, Palhaço e Lua Clara são guerreiros com nomes gravados na história recente da Polícia Militar de Alagoas (PM-AL). Danka, Hector, Radasha, Bela e Bruce também são valentes, animais que elevam ou elevaram o nome da Corporação com seus serviços. Nenhum deles possui número de ordem, matrícula ou carteira de identificação funcional, tampouco prestou concurso público para ingressar na instituição.
Os do primeiro grupo apresentados são cavalos e éguas do Regimento Montado Dom Pedro I (RPMon), enquanto os do segundo, são cães e cadelas do Canil Tiradentes. Todos desempenham um papel de extrema importância: são semoventes que servem à sociedade alagoana.
Esta é a primeira parte da reportagem sobre histórias do emprego de animais, desde as ações policiais até a aposentadoria deles.
“Sempre haverá uma Cavalaria”
A frase clássica do Regimento vai além de um mero lema. A continuidade da unidade especializada reflete um trabalho realizado com rigor, profissionalismo e cuidado. Isso se inicia pela reprodução. A remonta própria é pautada na seleção e criação de indivíduos com características desejáveis, como saúde e adaptabilidade. O atual garanhão reprodutor é 276, Hércules, um cavalo BH — abreviatura de Brasileiro de Hipismo, a raça mais comum na PM-AL.
Ao nascer, cada animal do plantel do RPMon recebe uma identificação numérica. Em seguida, é batizado com um nome cuja inicial segue a ordem alfabética. O nome é dado pelo período/mês de nascimento. Após o desmame, realiza-se o chamado “apartamento da mãe”, por volta dos seis meses, e inicia-se o processo de dessensibilização — etapa em que o cavalo é habituado ao convívio humano, desenvolvendo uma postura adequada para reagir com calma a situações potencialmente assustadoras. Todo o processo é conduzido por uma equipe dedicada ao cuidado e bem-estar do animal.
A fase seguinte é a doma, realizada na área denominada hípica, que inclui a seção de equitação. Essa etapa consiste no fortalecimento, adestramento e preparo do animal para o serviço, estendendo-se por um ou dois anos, até que seja considerado pronto para o trabalho de policiamento. O acompanhamento do cavalo prossegue ao longo de toda a sua vida de serviço. Também há aqueles de salto, que participam de competições em todo o Brasil.
Os setores na sede da Cavalaria incluem também os pavilhões, o maior deles é o do comando, onde ficam os setores administrativos, alojamentos e espaços de uso da tropa. O tenente-coronel Moisés Acácio responde pelo comando da unidade. Do lado oposto ficam as baias, onde cada um dos 73 animais são identificados por seu número e nome em seus boxes individuais. Há o controle do trato e da alimentação. No total são cinco sacas de ração concentrada, cada uma com 40 kg, além de 26 fardos de feno distribuídos entre eles diariamente.
A veterinária, como o próprio termo sugere, é o espaço onde são realizados os cuidados preventivos e tratamentos. Um dos auxiliares é o cabo Caio Raniele, militar com formação em Medicina Veterinária. Na ferradoria um meticuloso trabalho é desenvolvido por policiais como o cabo Lucas Gonzaga. Com extrema habilidade adquirida pela prática e por cursos fora de Alagoas, a função do setor é zelar pela saúde do casco do cavalo com medidas que incluem limpeza periódica de unhas e patas, remoção e colocação de ferraduras.
A reserva de armamento, comum às unidades militares, possui uma peculiaridade no RPMon: além das armas e instrumentos bélicos, também guarda a correaria. Os materiais de encilhamento feitos de couro e metal incluem sela, cabeçada, caneleira, alforjes, peitoral e outros itens de proteção individual para os animais. Entre os guardiões dessa reserva estão o sargento Luiz Antônio Luz e o subtenente Ernandes José.
Em praças, orlas, eventos no ambiente externo ao quartel, os cavalos como seus respectivos montadores, os conjuntos desenvolvem importante papel nas missões de policiamento ostensivo e controle de distúrbio civil. Ao completar sua carreira — a vida média do animal na PM é de 18 anos —, o cavalo ganha a aposentadoria. A tradição estabelece que, ao se aposentar, o cavalo recebe um rito de despedida simbolizado pela entrega de uma coroa feita com alimentos como cenouras, maçãs e feno. Em agosto deste ano, durante a solenidade em comemoração aos 33 anos do RPMon, a égua Lua Clara foi agraciada com esse saboroso tributo.
De arisco a amigo: o vínculo entre homem e cavalo
Quem visita a sede do Regimento, no bairro Chã da Jaqueira, em Maceió, pode ver um cavalo de pelagem castanha com uma mancha branca na fronte, pastando calmamente. O animal, antes rebelde, tornou-se um senhor que vive os dias de merecido descanso.
Quando nasceu, o pequeno potro recebeu o número 196. Antes dele, veio ao mundo o cavalo 193, que deveria ter um nome começando com a letra “O”: Olodum foi a escolha. Seguindo a sequência alfabética, o 196 foi nomeado com a inicial “P”: assim começou a vida de Palhaço.
Na mitologia grega, existe a figura dos centauros. Essas criaturas fantásticas são representadas com um corpo composto por um humano na parte superior e um cavalo, na inferior. Por equivalência, assim são chamadas as guarnições do RPMon. É fato: o binômio “homem-cavalo” é a essência da cavalaria, mas entre o cavalo Palhaço e o 3º sargento Cristiano de Lima a parceria foi além do serviço.
“As pessoas não gostavam dele porque ele empinava, não podia ver nenhum cavalo, já queria passar à frente no galope”, recordou-se.
O 196 era um animal arisco e de temperamento difícil, mas o cavaleiro decidiu encarar o desafio. A rotatividade é comum, mas como ninguém queria montá-lo, ele acabou ficando fixo para o militar, de modo que passou a obedecer e cumprir os comandos com precisão. “Depois de um tempo, diziam que éramos um só. Até porque o homem e o cavalo tornam-se um. Ele me entendia e eu o entendia bem. Com outras pessoas, não, porém comigo ele ficava tranquilinho”, relembrou o sargento De Lima.
Com o passar do tempo e o convívio, a cumplicidade só se fortaleceu. “Ele era bastante destemido, embora morresse de medo de carroça. Quando via uma, empinava, girava, voltava correndo no galope, mas aprendi a lidar com isso. Enfim, a gente se conhecia mesmo”.
Embora a dupla tenha sido desfeita em 2023, os dois velhos amigos ainda se reencontram com frequência na rotina da unidade operacional. O sargento, que ingressou na PM em 2006, ainda tem anos de serviço a cumprir e desempenha atualmente a função de auxiliar de supervisão. Já Palhaço, após uma lesão, foi aposentado. Sofreu um coice na altura do peito, que o fez mancar. Apesar do tratamento veterinário, não pôde mais retornar ao trabalho. É visto frequentemente pastando e passeando ao lado do cavalo 177, o Moderno, aposentado por idade.
A história de amizade e companheirismo entre o sargento e Palhaço continua, só que agora em um novo capítulo de suas vidas. Um episódio, porém, foi marcante: “Estávamos nós dois de serviço em um jogo no Rei Pelé, em dia de clássico entre CSA e CRB. Ele era recente no policiamento. Tivemos uma situação tensa fora do Trapichão. Começaram a jogar pedras na gente. Me esquivei de uma, puxei as rédeas, mas a boca dele era um pouco sensível. Ele empinou e caiu comigo. Nesse mesmo momento, outro militar também caiu do cavalo e se levantou. O cavalo dele foi embora, e só conseguiram pegá-lo do outro lado do estádio. Geralmente, em situações assim, o cavalo foge. Só que, depois da queda, o Palhaço se levantou, parou e ficou me esperando. Me levantei também, montei, e seguimos o policiamento”.
A lealdade do equino sobrepôs o instinto de sobrevivência. Nas palavras do próprio sargento, naquele instante, em meio ao distúrbio civil e sob ameaça das pedras, ele percebeu que nascia um vínculo eterno. “Aqui na Cavalaria, só levei três quedas, todas com ele. Em cada uma, ele se levantava e sempre me esperava montar novamente”, disse e deixou transparecer uma mistura de gratidão e orgulho.