Ao menos 437 presos e servidores do sistema prisional morreram em decorrência da Covid-19 desde o início da pandemia no Brasil, revela levantamento feito pelo G1.
Do total, 237 são funcionários, como agentes penitenciários e servidores da saúde, número que impressiona, já que é maior que o de detentos mortos no mesmo período (200). Há no país cerca de 85 mil agentes penitenciários, por exemplo. Já o número de presos chega a quase 700 mil.
Os dados, coletados nos 26 estados e no Distrito Federal dentro do Monitor da Violência, uma parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram ainda que houve 20.361 servidores infectados, ante 57.247 presos contaminados com a doença.
Os números são os mais atualizados possíveis. Eles foram solicitados na segunda (10) a todas as unidades da federação.
É importante destacar, porém, que os dados podem estar subestimados pois os relatórios das defensorias públicas relatam a falta de aplicação de testes da Covid-19 dentro dos presídios. A testagem em massa mesmo foi feita em poucas unidades prisionais.
Apesar de fazerem parte das forças de segurança, os policiais penais (agentes penitenciários) não foram incluídos nos grupos de vacinação em muitos estados do país. E somente em parte das unidades da federação os funcionários com mais de 60 anos ou com comorbidades foram afastados do trabalho.
O presidente da Federação Nacional Sindical dos Servidores Penitenciários (Fenaspen), Fernando Anunciação, afirma que os policiais penais não tiveram apoio dos governos ao longo de toda a pandemia.
"Tivemos dificuldade no início até para conseguir equipamentos de proteção", conta. "Os estados não estavam fornecendo máscaras. Os sindicatos compraram tecido. Em algumas unidades penais temos fábrica de costura e os presos fabricavam para nós, em outras contratamos costureiras para fabricar. Foi bastante difícil."
Anunciação ressalta que, mesmo sem a proteção adequada, os servidores penitenciários fazem toda a movimentação de presos com suspeita ou já infectados com Covid-19. Não só para fazer testes como também no dia a dia, levando-os e retirando-os das celas e para receber atendimento médico.
"Se tem um preso com suspeita de Covid-19, nós temos que entrar na cela, fazer a remoção para o isolamento. Estamos em contato direto diariamente. Aglomeração constante todos os dias. E a gente vai para casa, sai na rua, pega transporte público, também corre esse risco. É uma exposição constante."
"O mais difícil é que nós não paramos. Não mudamos em nada o nosso trabalho. É um serviço essencial para a segurança pública no Brasil. Não podemos delegar para ninguém. Não tem home office no sistema penitenciário. As prisões estão acontecendo. O Judiciário não está parado, tem feito audiências virtuais, e a gente está lá recebendo essa gama de apenados."
O presidente da Fenaspen critica o fato de os servidores penitenciários não estarem na lista de prioridades da vacinação.
"O que nos assusta ainda mais é que o servidor penitenciário não é prioridade para ser vacinado. Temos ações no Ministério Público porque juízes suspenderam a vacinação no sistema penitenciário. Nós estamos no confinamento. São quase 1 milhão de presos que estamos movimentando, nos esforçando para que não haja fuga em massa, para que não haja contaminação em massa, mortandade. Estamos fazendo milagre praticamente de estar conseguindo minimizar essas contaminações. E a sociedade e as autoridades não reconhecem isso."
O grande número de afastamentos também tem impactado a rotina. Segundo ele, além da falta de pessoal, vários que ficaram internados com Covid-19 voltam para trabalhar nessas mesmas condições insalubres e expostos novamente ao risco diário.
"Temos vários colegas intubados neste momento. Temos vários que ficaram internados e já voltaram a trabalhar e a se expor diariamente. Imagine o psicológico desses servidores."
Procurado, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) diz que a taxa de letalidade em razão da Covid-19 é baixa e que monitora todos os casos suspeitos e detectados.
O órgão afirma ter atuado em ações de saúde, orientações técnicas, aquisição de insumos, reuniões com gestores e realização de eventos online para compartilhar boas práticas e incentivar a produção de materiais de combate à doença com o trabalho prisional.
"Na compra de insumos de combate à Covid e testes rápidos, por exemplo, foram investidos R$ 46.491.959,10", diz a nota.
Quatro infectados na mesma família
O policial penal Ivo de Arruda Coelho é um exemplo disso. Ele redobrou os cuidados quando voltou a trabalhar depois de sofrer com a Covid-19. Ficou oito dias internado, precisou ser intubado e saiu do hospital 10 kg mais magro. Coelho desconfia que pegou o vírus no Centro de Triagem Anísio Lima, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul.
Ivo voltou a trabalhar 17 dias depois de receber alta. Nesse intervalo, fez fisioterapia, alguns exercícios respiratórios e inalação para se recuperar mais rápido.
"Muitos colegas estão contraindo o vírus. Inclusive, acabamos de perder para a Covid um policial penal aposentado que foi ex-diretor de nossa unidade. Infelizmente, não estamos livres de outras mortes", diz.
"Mas, se antes estávamos tomando todos os cuidados, agora os cuidados foram redobrados e a fiscalização dentro do local de trabalho é uma constante para garantir a todos o máximo de segurança e o mínimo de risco."
Outros três familiares de Ivo — todos policiais penais — foram infectados pelo novo coronavírus em um intervalo de um mês. A mulher pegou uma semana depois. Teve febre, tosse, cansaço e sonolência. A cunhada teve sintomas leves. Já o irmão ficou 18 dias internado antes de melhorar e receber alta. Todos já voltaram a trabalhar.
Visita familiar à distância
Os filhos de Angelita Solé e Luciene da Silva estão presos. A última visita presencial que elas fizeram foi em março de 2020. Agora, elas podem ver os filhos apenas pelo celular uma vez por semana durante 5 minutos.
Apesar da saudade e da vontade de abraçar os filhos em um momento tão delicado como a pandemia da Covid-19, as mães têm medo que seus filhos se infectem com a doença e preferem que a visita permaneça virtual.
O reencontro presencial será marcante para o filho de Luciene, Kauan da Silva, de 22 anos. A filha dele nasceu durante a pandemia e já completou 1 ano, mas ele nunca a pegou no colo.
"Ele viu a filha duas vezes por chamada de vídeo. Essa criança veio para mudar a cabeça dele. A criança está crescendo só com a presença da mãe e da avó. Ele queria estar aqui fora para ver o crescimento, educar. É muito doloroso para ele", diz a mãe.
Como a falta de atendimento médico também é uma preocupação, Angelita enviou ao seu filho remédios pelos Correios, mas ela não tem certeza se a medicação chegará a ele. Por carta, o filho contou que estava "gripado, resfriado".
A mãe espera a segunda dose da vacina contra a Covid-19 e torce para a situação melhorar logo. "Não vejo a hora de dar logo um abraço nele."
Testagem e vacinação
O defensor público e ex-diretor do Depen Renato De Vitto afirma que há muita subnotificação no sistema carcerário. Ele ressalta que, em São Paulo, por exemplo, os policiais penais fazem teste PCR, mais confiável, e os presos fazem teste rápido, com menor grau de acerto.
"São todos seres humanos, todos merecem assistência à saúde e todos estão sujeitos à contaminação. O que a gente precisa é de uma ação concreta: testar os servidores de maneira periódica e incluir servidores e presos no grupo prioritário de vacinação. Para evitar que se torne um vetor. Não estou falando isso do ponto de vista de direitos. Estou falando da estratégia sanitária. De controle da pandemia. Se não controla dentro do presídio, não controla fora."
A respeito da menor taxa de mortalidade dos presos, De Vitto levanta como hipótese a população carcerária ser mais jovem que a população geral (e que a dos próprios servidores). Ele ressalta, porém, que isso pode mudar com as novas variantes.
"No começo da pandemia, 76% dos presos que morreram eram idosos. A população dos presos é extremamente jovem. Naquele primeiro momento havia indicadores de letalidade baixos."
Falta de máscara e ventilação
Para a médica de família e comunidade Andreia Beatriz, que atua em uma equipe de saúde prisional em Salvador, na Bahia, a disseminação da Covid-19 foi facilitada dentro do sistema prisional por causa da falta de máscara e ventilação. Ela lembra ainda que a suspensão das visitas de familiares também mudou a rotina dos presos.
"As visitas, quando foram retomadas, é que levaram máscaras por causa da insuficiência do fornecimento pela gestão do sistema prisional. As pessoas não vivem em condições adequadas de ventilação. São celas superlotadas e há um déficit de vagas", diz a professora e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Desigualdades em Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana.
"As visitas são responsáveis por levar comida, medicação (que muitas vezes faltam nas unidades), água potável (que muitas vezes não é fornecida nas unidades), papel higiênico, roupa íntima (muitas pessoas não recebem do Estado) etc."
Para ela, o fato de os servidores saírem de dentro da prisão e, portanto, pegarem ônibus lotados e terem contato com amigos e familiares pode ter contribuído para a contaminação e também para o alto número de mortes pela Covid-19. Outra hipótese é que os servidores sejam mais velhos do que os presos, o que pode ter agravado a situação.
Situação calamitosa nos estados
Relatórios das defensorias públicas dos estados revelam, de fato, que os presos não usam máscara nem estão em locais ventilados. Também não há distanciamento social, já que as prisões são superlotadas.
Em alguns casos, os presos confirmados com a Covid-19 são mantidos na mesma cela com presos sem a doença. Há relatos também de situações em que os presos ficam em celas separadas em razão da Covid-19, mas não podem sair de lá por duas semanas, nem mesmo para o banho de sol.
Além disso, as máscaras não são utilizadas por todos os servidores. Essas condições favorecem a disseminação do novo coronavírus.
Para o perito Bruno Renato, do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura, a situação no sistema prisional é muito preocupante.
"A gente começou a constatar esse cenário a partir de denúncias. Quem conseguia entrar nas prisões denunciava o caos que se tornou os espaços de privação de liberdade. E o argumento que vinha dos estados, e do governo federal, é que os presos estão mais seguros lá dentro do que aqui fora. Mas nunca houve uma testagem que pudesse comprovar isso", afirma.
"Há hoje uma fragilidade dos órgãos de controle. E não houve por parte do governo uma iniciativa de testar em massa os presos, de construir meios que garantam o atendimento em saúde, de promover uma política efetiva com a previsão da vacinação dessa população. Isso faz com que o agente penitenciário se torne um vetor, porque ele é o que sai da unidade, é ele que vai encontrar o familiar. E ele retorna para unidade. Então ele passa a ser um disseminador da contaminação. É emergencial a vacinação da população carcerária e dos servidores do sistema porque é impossível ter como controlar esse surto se não houver uma ação voltada especificamente para essas pessoas."
Em alguns estados, o número de vítimas nas prisões se destaca. O Acre, por exemplo, tem uma das maiores taxas de mortos pela Covid dentro das prisões. Não só presos foram vítimas da doença, mas também agentes.
"Muito agentes penitenciários tiveram Covid-19. Falta efetivo para levar os reeducandos, levar para audiência, fazer videoconferência. O efetivo já é baixo. Agora ficou ainda menor", afirma o promotor Tales Fonseca Tranin, da Promotoria da Execução Penal e Fiscalização de Presídios do MP do Acre. "Já entrei com ação civil pública para fazer concurso público."
Tranin faz vistorias regulares no maior complexo presidiário do Acre, o Francisco de Oliveira Conde, em Rio Branco. E tem testemunhado diretamente o impacto da Covid-19 na rotina dos agentes e dos presos.
"Os médicos também pegaram coronavírus e ficaram suspensos. Impactou nos profissionais da saúde", diz. "Outra coisa é dentista. Não estão mais fazendo obturação por causa do aerossol, que tem um potencial de transmissão muito grande. Voltaram por intervenção minha só para arrancar o dente. Mas sempre aconselho os reeducandos para não arrancar porque não nasce mais. Tentar aguentar, com remédios para dor, até voltar a fazer obturação."
Segundo o promotor, o maior efeito sobre os presos foi provocar um isolamento completo. "O que mais impactou (na rotina dos presos) foi não ter mais visita. Eles recebiam visita íntima na quarta-feira, familiar no domingo, levavam comida. Agora deixam algum alimento uma vez por mês, mas sem contato", explica.
"Os presos ficam sem contato nenhum com as pessoas de fora. Não têm notícia. As cartas são muito controladas, porque tem que haver uma análise de cada uma, já que as facções as usam para enviar ordens. Não se pode abrir mão da segurança e não há gente suficiente para analisar todas as correspondências.”