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31/03/2021 às 13h37min - Atualizada em 31/03/2021 às 13h37min

Por que o Brasil ainda flerta com a ideia de uma intervenção militar?

Quase 60 anos depois da ação que historiadores classificam como um golpe, país ainda não conseguiu virar a página da ditadura como possibilidade de salvação

João Luiz Sampaio, colaboração para a CNN Brasil
CNN Brasil
Confronto entre manifestantes favoráveis a greve e policiais militares no centro de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, em abril de 1980 Foto: Estadão Conteúdo

Na segunda-feira (29), o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo Silva, deixou o cargo que ocupava desde o início de 2019. Foi substituído pelo general Walter Braga Netto. No dia seguinte, o novo titular da pasta soltou seu primeiro comunicado oficial: um texto sobre o 31 de março, data que marca 57 anos do evento que a história chama de golpe militar.

Braga Netto diz, em sua nota, que naquele dia “as Forças Armadas acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o País” e que a Lei de Anistia, de 1979, “consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia”. No fim, o ministro da Defesa diz que “a Marinha, o Exército e a Força Aérea acompanham as mudanças, conscientes de sua missão constitucional de defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais”.
 

O ministério anunciou também a troca dos comandantes das Forças Armadas: Exército, Marinha e Aeronáutica. Azevedo e Silva falou sobre o papel das Forças Armadas como instituições de Estado; e o general Edson Pujol, comandante do Exército, pregou respeito à Constituição de 1988.

Para historiadores ouvidos pela CNN, as falas são marcantes e mostram que, quase três décadas após a redemocratização, a vida política brasileira ainda não superou o período da ditadura e o flerte com a ideia de uma intervenção militar. 

“As declarações são eloquentes e apontam uma posição do alto escalão contra a ideia de um golpe. Mas é significativo que a democracia brasileira ainda precise discutir essa possibilidade”, diz a historiadora e cientista política Heloisa M. Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
 

A defesa de uma nova intervenção militar ou a relativização das ações do regime que durou até 1985 têm sido frequentes em manifestações de rua e em declarações do presidente Jair Bolsonaro. Mas não só. Em junho de 2020, pesquisa do Datafolha mostrou que 22% dos entrevistados defendiam a volta da ditadura ou não se importavam com o fim da democracia. Segundo o instituto, foi o número mais alto desde que a pergunta começou a ser feita, em 1989.

Anistia e salvacionismo

Para o historiador Pedro Castelo Branco, integrante do Laboratório de Estudos Políticos em Defesa e Segurança Pública, ligado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e à Escola Superior de Guerra, a ditadura ainda é uma “ferida aberta” na história brasileira. Entre os motivos, ele cita a Lei da Anistia, promulgada em 1979, segundo a qual ficava impedida a criminalização, entre outros grupos, de servidores públicos, militares e sindicalistas por atos realizados durante o regime. 

“A lei buscava uma contemporização entre as Forças Armadas e a sociedade civil, mas não resolveu as questões que existiam entre os dois lados. E tornou válida a ideia de que a ditadura foi uma resposta necessária em um contexto marcado pela Guerra Fria e não um regime de exceção, de repressão de direitos, uma percepção ainda forte entre os militares”, explica Castelo Branco, que é descendente do primeiro presidente militar, Humberto Castelo Branco.
 

A ideia é ecoada por Marcos Napolitano, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “História do Regime Militar Brasileiro” (Editora Contexto). “A lei foi um dos marcos da transição do regime. E esse pacto, se evitou conflitos políticos mais graves e instabilidade nos quartéis, não permitiu que a democracia brasileira fizesse um trabalho efetivo de autocrítica e expiação desse passado autoritário em vários níveis”, acredita. 

Heloísa Starling olha em outra direção. Para ela, a ideia de uma transição “gradual, lenta e segura”, como proposta durante o governo de Ernesto Geisel, não era um problema em si, mas, sim, o que veio depois do fim do regime. 
 

“É uma questão de duas vias, em que o papel da sociedade civil precisa também ser pensado. Faltou um projeto amplo e democrático de inserção das Forças Armadas no novo regime, ou seja, construir com elas um novo papel institucional”, diz.

E essa ausência de um papel claro leva a outras questões. Em um momento de demonização da política e de descrença nas instituições, a criminalização da política vira uma ideia. E então a pergunta que muitos se fazem é: quem vai nos salvar? “Por conta disso, há um retorno à noção antiga de salvacionismo militar, com seus agentes como figuras messiânicas”, aponta Castelo Branco. 

 

“Acho que vivemos uma mistura explosiva no pós-1988: desigualdade social persistente, corrupção sistêmica, altos índices de criminalidade”, diz Napolitano. Há uma crença enraizada em parte da população de que a democracia é incapaz de lidar com esses problemas, e que as instituições só atendem às elites econômicas. 

Tudo isso converge para o que a historiografia chama de salvacionismo militar, ideia antiga na vida republicana, partilhada por setores militares e civis. Segundo esta crença, só as Forças Armadas estariam livres da corrupção, seriam guiadas por patriotismo desinteressado e teriam competência técnica para lidar com os problemas sociais e econômicos, sem os limites e rituais da democracia.

Cultura democrática

Starling, que é coordenadora da coleção Arquivos da Repressão no Brasil, publicada pela Companhia das Letras, também chama atenção a outro ponto que considera importante nos anos seguintes à redemocratização. Para ela, houve uma preocupação muito grande com a consolidação e preservação das instituições, mas sem que houvesse a criação de uma cultura democrática entre a população. “As instituições não podem se defender sozinhas e não houve preocupação em trabalhar o espírito democrático da sociedade, para que ela agisse nessa defesa.”

E isso está ligado diretamente à educação, defende Napolitano. “A transição democrática não foi seguida de um trabalho ativo de disseminação de uma memória crítica do período autoritário e a defesa institucional da democracia. Boa parte da sociedade não tem acesso ao conhecimento histórico e fica à mercê de informações que chegam pelas redes sociais”, explica. 

João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos e organizador de “Os militares e a crise brasileira” (Alameda Editorial), que reúne textos de pesquisadores da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, entre eles um militar da reserva, concorda. 

“Na idade em que estão prontos para aprender a diferença entre democracia e ditadura, os jovens não aprendem. Isso e a descrença nas instituições levam a um descrédito no regime democrático. É algo que não acontece só no Brasil, como vimos nos Estados Unidos de Donald Trump. Mas as falhas na educação por aqui tornam o problema ainda maior”, afirma.

Nesse contexto, visões equivocadas sobre o que foi o regime militar também acabam se perpetuando, levando à sua relativização. É o que defende o jornalista e pesquisador Roberto Simon.

“Permanece a ideia de que aqueles foram anos de glórias, quando houve crescimento e não havia corrupção. Mas isso é uma falsificação da verdade histórica. Se na primeira metade do regime o Brasil cresceu, também é verdade que a segunda metade foi um momento de pressão inflacionária, de empobrecimento da população, de aumento da desigualdade. E que houve grandes casos de corrupção, como na construção da usina da Itaipu”, explica.

Ex-diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade de Harvard, Simon pesquisou o apoio brasileiro ao regime de Augusto Pinochet, no Chile. O trabalho resultou no livro “O Brasil contra a Democracia” (Companhia das Letras), lançado em fevereiro. E o colocou em contato com as dificuldades enfrentadas por quem estuda o período.

“O grande problema tem a ver com os arquivos. Há muito a se fazer no sentido de tornar os acervos de fato acessíveis. E há ainda o problema de destruição documental que houve no Brasil”, conta.

Ainda assim, ele acredita que vivemos um momento de avanço nos estudos da ditadura brasileira, com atenção a diferentes enfoques. O problema, diz, é fazer esse conhecimento chegar ao público. “Em especial em um país pouco educado como o nosso, é necessário encontrar formas de criar pontes entre esse novo conhecimento que está sendo produzido, a educação e o debate político.”

Nesse sentido, Castelo Branco acredita na necessidade de se repensar a formação de oficiais das Forças Armadas no Brasil, o que para ele é fundamental para um novo olhar a respeito da ditadura e para a superação desse capítulo da história, que a cúpula militar segue chamando de revolução. 

“É complicado falar em uma só ala militar. O general Edson Pujol é diferente, tem ideias diferentes das do General Augusto Heleno, por exemplo. As Forças Armadas brasileiras têm quadros altamente qualificados, que respeitam a Constituição e a democracia. Mas há uma formação comum, que ainda trata o golpe como um movimento necessário e estimula a ideia de revanchismo”, afirma Castelo Branco


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