Bairro Terra Firme, na periferia de Belém. Foto: Pedro Ladeira / Reprodução
Nem sempre o trajeto é viável. Se dentro de casa a água falta, fora é preciso lidar com alagamentos em época de chuva. Para se deslocar, moradores afundam o pé na maçaroca de lama e esgoto.
"Se pisar, no outro dia já amanhece com febre e dores no corpo", relata ela, que costuma levar os filhos para a casa de parentes nesse período na tentativa de evitar doenças.
Parte de seus vizinhos, contudo, recorre à água da chuva para abastecer os baldes. com o alagamento, o poço original é invadido pela sujeira.
Bruna e seus vizinhos são alguns dos 35 milhões de brasileiros que vivem sem acesso à rede de abastacimento de água, pilar do saneamento básico.
O outro pilar, o acesso à coleta e tratamento de esgoto, está mais atrasado: inexiste para 100 milhões, quase a metade da população do país.
Para se ter uma ideia, seria o mesmo que deixar toda a Colômbia, Argentina e Chile, juntos, sem nenhuma rede de esgoto. Ou, ainda, ter o Canadá inteiro sem água tratada.
A situação parece ainda estar longe de mudar. Levantamento da Folha a partir de dados dos Sistema Nacional de Informações sobre Sanaeamento, do Ministério de Desenvolvimento Regional, mostra que o indicador de acesso à água trata passou, em dez anos, de 81,4% para 83,5%.
Já o de coleta de esgoto foi de 40,9% para 52,4%, mas desacelera desde 2013. Ou seja, o avanço anual do índice de atendimento de água e esgoto no país foi, respectivamente, inferior a 0,3 ponto percentual e de 1,3 ponto percentual, levando-se em conta os indicadores nos últimos dez anos.
Se esse ritmo for mantido e os valores de investimento permanecerem iguais, bem como o tamanho da população, serão necessários mais de 50 anos para o país atingir 100% de acesso nas duas categorias (projeções de entidades do setor com as mesmas condições colocam a universalização do acesso para depois de 2060).
Serão, pelo menos, três décadas de atraso em relação à meta do Plano Nacional de Saneamento Básico, que previa que isso ocorresse até 2033. O cálculo é de entidades como o Trata Brasil e CNI (Confederação Nacional da Indústria).
"Em saneamento, estamos no século passado", diz Roberval Tavares de Souza, presidente da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental). "Temos indicadores de terceiro mundo". O cenário se agrava com a disparidade entre regiões.
Enquanto no Norte o índice de acesso à rede de coleta de esgoto é de 10%, no Sudeste, é de 78,6%. O mesmo abismo é visto em relação ao abastecimento de água, o qual varia de 57,5% na região Norte, a 91,2% na Sudeste.
Para especialistas ouvidos pela Folha, faltam investimentos e atenção ao problema. "O saneamento em geral não é prioridade e não e tratado com lógica de Estado. É sempre uma questão política, não tem continuidade", diz Souza.
Para o relator especial da ONU em direitos humanos em água e saneamento, Léo Heller, o Brasil caminha hoje na contramão de países que atingiram a universalização do acesso a esses serviços.
"A história dos países que avançaram nessa direção mostra forte investimento público. É preocupante um país que ainda acumula muits déficits em vários dos serviços de saneamento que haja retração por parte do Estado", afirma.
Problemas de gestão, falta de integração entre serviços e falta de planejamento são outros entraves. "Temos um quadro de gestão dessa política muito fragmentado, com baixa articulação", diz Heller, que vê necessidade de integração do governo federal com serviços estaduais e municipais.
"É preciso aperfeiçoar gestão, regulação e modelos tarifários. Investir fortemente no planejamento dos planos municipais de saneamento e na criação de espaços de participação dos usuários."
Ao todo, apenas 41,5% das cidades têm plano municipal de saneamento básico, documento que traça indicadores e metas para ampliar o acesso, segundo a edição mais recente da pesquisa de Munic, do IBGE. E, mesmo entre essas, falta controle da aplicaçao do plano, apontam especialistas.