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19/12/2018 às 10h55min - Atualizada em 19/12/2018 às 10h55min

'Roma', um grande filme sem lições de moral

Diretor mexicano Alfonso Cuarón trata de relações entre patrões ricos e seus empregados com delicadeza e sem panfletarismo; leia crítica.

g1.com.br


Filme brasileiro --documentário ou ficção-- sobre as relações entre os ricos e seus empregados domésticos: enxurrada de má consciência, didatismo, liçõezinhas de moral, "mensagens" edificantes.

Filme de Alfonso Cuarón, diretor mexicano, sobre as relações entre os ricos e seus empregados domésticos: narrativa seca, sentimento. O filme se chama "Roma". Trata, sem panfletarismo, de um tema delicadíssimo. É um marco.

Roma, o bairro, é a área da Cidade do México onde Cuarón cresceu. Colonia Roma, nome completo. "Roma", o filme, é uma autobiografia da infância de Cuarón. O que inclui a família (pai ausente, mãe dondoca, avó, dois irmãos, uma irmã) e duas empregadas. Uma delas, Cleo, também babá, interpretada à perfeição pela estreante Yalitza Aparicio. É a estrela do filme.

"Roma" se passa no começo dos anos 1970. Tempo, no México, de turbulência política (protestos nas ruas) e da natureza (incêndios, terremotos). Não é uma autobiografia explícita. Mal dá para entender qual dos três irmãos seria Cuarón. Também não traz um roteiro à americana, seguido à risca nas séries de TV: aquele de situações perfeitamente encadeadas, frases ("one-liners", no jargão) bem sacadas, diálogos impossivelmente inteligentes. "Roma" quase não tem história.

Uma das primeiras cenas cria tensão a partir de praticamente nada: o pai médico, que volta do trabalho, tenta encaixar o gigante automóvel Galaxy na garagem estreita (é uma classe de classe média alta, mas é uma casa de classe média alta na América Latina, com todos os improvisos e gambiarras que isso implica).

Parece uma cena de um livro Karl Ove Knausgård, o norueguês dos romances autobiográficos em que virar uma maçaneta ocupa um capítulo de 30 páginas. O Galaxy parece que não cabe. O pai engata ré, apruma a banheira sobre rodas, tira fina da parede, ouve música clássica no último volume, apaga o cigarro no cinzeiro do painel. Seu rosto não aparece. Só as mãos. Os filhos, a mulher e as empregadas esperam, ansiosos, a conclusão do ritual do estacionamento. Ufa, ele consegue.



O pai não vai durar muito em cena, a mãe maluquete vai ter de se virar. E a vida da empregada-babá Cleo será virada de cabeça para baixo por um namorado que não estava muito a fim de compromisso.

A relação da família com as empregadas, especialmente Cleo, é tratada com delicadeza e nuances. Num instante ela está aconchegada com os patrões vendo um filme, no seguinte já recebe uma ordem a ser cumprida imediatamente.

Num momento Cleo é destratada por causa uma questão caseira qualquer. Dias depois, recebe ações caridosas da mesma família. Um dia, um ato heroico de Cleo tem consequências cruciais para a família --mas mal ganha uma palavra de agradecimento. Às vezes, Cleo existe. Muitas vezes, não. Cleo, a heroína, é também resignação e ausência.

"Roma" foi filmado em um preto e branco cintilante pelo próprio Cuarón (seu diretor de fotografia predileto não estava disponível). Algumas cenas serão estudadas por muitos anos. Vamos chamá-las de "a da maternidade", "a da loja de móveis" e "a da praia". São prodígios de técnica (como o uso da profundidade de foco na "da maternidade"), mas também de expressão de sentimento. A técnica está a serviço da narrativa. Não são planos-sequência (cenas filmadas sem cortes) puramente virtuosos.

Uma crítica possível: excesso de zelo nas composições das cenas, um certo formalismo estético. Mas isso não tira os inúmeros méritos do filme.

Vi "Roma", mês passado, nos EUA, em um cinema. Que experiência. Cuarón são usou trilha musical (só se fizer parte da cena --por exemplo num baile). Na edição de áudio ambiente, a vida emerge como trilha sonora de si própria. Sem empurrar "mensagens" edificantes goela abaixo de ninguém. Sem aulinha. Sem maniqueísmos ou "self-righteousness".

No Brasil, país tão parecido com o México, as exibições em cinemas estão sendo muito restritas, e a grande maioria verá o filme na TV. Não é a mesma coisa, mas já é muito.

 
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