Em breve, nascentes de igarapé, ruínas de pedras no meio de matas e roçados de ervas medicinais podem figurar na lista de bens tombados brasileiros com a mesma importância de antigos palácios, fortes e casarões para a história do País. Esse é um dos efeitos pretendidos pela Portaria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que está publicada no Diário Oficial da União desta segunda-feira, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, para regulamentar um novo instrumento legal de tombamento de quilombos, com seus territórios, elementos naturais e arquitetônicos, práticas e ritos tradicionais.
Com base no §5º do art. 216 da Constituição Federal, segundo o qual “ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas de antigos quilombos”, a Portaria estabelece as diretrizes para o reconhecimento desses documentos e sítios – incluindo quilombos ainda hoje ativos – como patrimônios culturais do Brasil. Por se basear no texto da própria Carta Magna, será um procedimento mais simples e célere do que o tombamento tradicional, que é regido pelo Decreto-Lei nº 25, de 1937.
A cerimônia que celebra a assinatura da Portaria ocorrerá no auditório do Iphan em Brasília, às 15h, e contará com a presença do presidente da autarquia, Leandro Grass, e autoridades de Estado convidadas. Na mesma cerimônia, ainda será apresentado o Comitê Permanente para Preservação do Patrimônio Cultural de Matriz Africana (Copmaf), criado há dois meses no âmbito do Iphan . A cerimônia será aberta ao público e à imprensa , com transmissão ao vivo pelo canal do Iphan no Youtube.
Diálogo e construção coletiva
“A Portaria é fruto de grande empenho dos nossos servidores, de muito diálogo com diversos órgãos, além de audiências e encontros presenciais com diversas comunidades quilombolas”, diz Leandro Grass.
De fato, a Portaria de Tombamento dos Quilombos começou a ser elaborada há seis meses pelo Iphan, que contou com a colaboração dos Ministérios da Cultura (MinC), da Igualdade Racial (MIR) e dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Fundação Cultural Palmares. Para a redação final do documento, o Iphan ainda o submeteu a uma consulta pública durante 45 dias, por meio de formulário eletrônico, além de participar de reuniões com comunidades quilombolas e entidades representativas dessa população, nas cinco regiões do País. A consulta rendeu 240 contribuições de organizações e indivíduos da sociedade civil – em sua maioria, quilombolas residentes em quilombos.
O texto que está publicado no Diário Oficial da União incorporou algumas dessas contribuições à minuta original, resultando num documento que, segundo a procuradora federal do Iphan Mariana Karam, cria “uma nova forma de tombar, mais direta e objetiva, mas com proteção [aos quilombos tombados] tão forte quanto a do Decreto-Lei”.
“Não existe análise de valoração de um bem que já está reconhecido como patrimônio desde a Constituição; não é preciso passar por um conselho consultivo”, diz a procuradora. “Ao Iphan, cabe apenas um ato de natureza declaratória: verificar se alguns requisitos foram atendidos e fazer o reconhecimento da Constituição.”
Pela nova Portaria, podem ser tombados tanto sítios que abriguem vestígios materiais de quilombos já extintos ou documentos que façam referência à memória dos mesmos, quanto sítios ainda hoje ocupados por comunidades quilombolas, que trazem o legado de seus antepassados vivo em suas práticas atuais. São quilombos que seguem existindo como locais de manutenção e reprodução de modos de vida característicos de uma parcela expressiva da população – 1,3 milhão de brasileiros quilombolas, de acordo com o último censo.
A Portaria define também que qualquer pessoa física ou jurídica pode solicitar o tombamento desses documentos e sítios, direcionando o pedido à superintendência do Iphan no estado onde estão localizados. Entre as informações exigidas para a instauração do processo declaratório, é preciso apresentar certidão de autodefinição das comunidades envolvidas como remanescentes de quilombos – documento emitido pela Fundação Cultural Palmares – e, quando houver, relatório de identificação e delimitação territorial emitido ou aprovado pelo Incra.
Prioridade para agendas da população negra
Para a coordenadora-geral de Identificação e Reconhecimento do Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização do Iphan, Vanessa Pereira, a assinatura da Portaria de Tombamento dos Quilombos no dia de hoje representa uma renovação das políticas patrimoniais do Estado brasileiro.
“Não há uma conclusão de fato com essa assinatura; na verdade, a Portaria é o começo oficial de uma mudança de postura do Iphan em relação ao patrimônio cultural das comunidades quilombolas”, diz a coordenadora.
Ela se refere ao fato de que, até hoje, o Brasil tem apenas um quilombo tombado – o Quilombo do Ambrósio, em Minas Gerais –, em grande medida por conta de uma interpretação estreita da Constituição, segundo a qual o artigo 216 não reconheceria em seu escopo quilombos vigentes ou mesmo aqueles já extintos, mas criados pós-Abolição da Escravatura. “É o início de um novo momento, no qual a gente espera poder avançar nesses tombamentos, seja aumentando significativamente o número de bens tombados, seja verificando se a metodologia que estamos propondo é efetiva”.
Essa verificação é, aliás, um dos pontos expressamente previstos pela Portaria, que determina que o Iphan deve revisá-la dentro de um prazo de 12 meses, por meio de análise de casos concretos e novas rodadas de consultas.
“No próximo ano, teremos a oportunidade de corrigir rumos e aprimorar ainda mais essa Portaria, visando contemplar toda a complexidade desse patrimônio”, diz Vanessa Pereira.
Para Leandro Grass, o cuidado com que a Portaria foi construída e está sendo proposta reflete um movimento da atual gestão do Iphan , de “reconhecer e valorizar a cultura de matriz africana, que faz parte da nossa origem e da nossa história”. “É um projeto estratégico alinhado às diretrizes do novo governo, no sentido de priorizar as agendas da população negra brasileira” , diz o presidente .
Até por essa razão, o evento de hoje servir á também como apresentação oficial, para a sociedade, do Comitê Permanente para Preservação do Patrimônio Cultural de Matriz Africana (Copmaf) no âmbito do Iphan. O Comitê visa fortalecer a atuação institucional do Iphan na preservação, promoção e difusão, fomento e capacitação sobre o Patrimônio Cultural de Matriz Africana; além de consolidar diretrizes e práticas institucionais qualificadas e permanentes no tratamento e instrução de processos de trabalho relacionados a este Patrimônio.
Instituído em 20 de setembro de 2023, o Copmaf surgiu a partir de proposta elaborada pelo coletivo de servidores negros do Iphan, como explica Bruna Ferreira, uma de suas integrantes. “Nossa articulação teve início em 2019, a partir do nosso desejo de propor à gestão a realização de um evento alusivo ao Dia da Consciência Negra no Iphan, o que acabou não se concretizando nem naquele ano, nem nos seguintes, até agora “, diz ela . “Por isso, é muito significativo para nós o convite para participar da retomada dessa comemoração , com entregas tão importantes. A regulamentação do tombamento dos quilombos é um marco deste novo momento na condução da política de patrimônio cultural do País.”
ama-al